O subjetivo na escrita culinária: revisitando M.F.K. Fisher
Betina Mariante Cardoso
Soon to be translated from the Portuguese to the English
Para mim, a leitura da obra de M.F.K. Fisher (Mary Frances Kennedy Fisher) ultrapassa o prazer literário provocado por sua escrita: trata-se de um profundo enriquecimento pessoal. Meu livro favorito desta autora? É difícil escolher, mas atravessar as linhas de The Gastronomical Me foi um fenômeno transformador.
Em uma tradução ligeira, o título é: “O Eu Gastronômico”. Sim, ligeira, pois há grande força e simbolismo nas fibras deste título. Apesar de Mary Frances explorar suas histórias e perspectivas subjetivas nos textos, ao ler com atenção, percebo que cada um de nós, para quem o ato culinário é precioso, poderia ocupar a identidade deste ‘Eu Gastronômico’, deste “Me”, no idioma inglês. Aliás, qualquer um de nós poderia ocupar esta identidade, pois temas como o ‘comer’ e a ‘fome’, também tratados por ela, respondem ao nosso Humano mais profundo.
Na minha leitura, são textos em que a narradora nos empresta seu lugar, seu ponto de vista, para que possamos experimentar suas vivências, como se estivéssemos em seu papel, em sua ‘primeira pessoa’, nos sabores que descobre. Esta característica dá grande força aos seus textos, através do uso desta narrativa em primeira pessoa do singular. Ler-nos em suas sensações, percepções, vicissitudes é aceitar que a autora nos conduza em uma viagem para dentro de nossas próprias narrativas. Um passeio autobiográfico, então. E pergunto: cozinhar não é também uma autobiografia, um ‘contar de si’?
Bom, há vários focos de encanto, no conjunto desta obra, que, sem aviso, despertam o leitor para a reflexão. Sou pega de surpresa já pelo trecho de abertura:
(Tradução livre- Betina MC)
Ao folhear este livro, encontro diversos capítulos de mesmo nome, escritos em datas diversas e entremeados com textos de títulos diferentes.”The Measure of my powers” (‘A dimensão de minhas forças‘), repete-se uma série de vezes, trazendo à tona a menção ao trecho de abertura, de Santayana; a repetição deste título específico, contudo, dá o tom autobiográfico e intimista de “The Gastronomical Me”. Sinto, ao percorrer as páginas, a profundidade com que a autora conta de suas histórias culinárias, suas descobertas e reflexões. É como se, a cada um dos capítulos que intitula ‘A dimensão de minhas forças’, ela respondesse ao trecho inicial, contando de sua busca pela dita felicidade. “Para ser feliz, você deve ter conhecido a dimensão de suas forças”, diz o trecho, e Mary Frances trata de retomar esta ‘ordem’, nos capítulos do livro, mantendo a busca como linha condutora de sua escrita subjetiva.
Se a tônica me parece estar no ‘ser feliz’, há, nas entrelinhas, uma procura ainda mais profunda: a procura pela sua identidade, por suas ‘forças’ e potenciais, por sua essência, facetas de si que ela traduz por sua relação com o universo do ‘comer’e do ‘fazer culinário’. Para mim, é neste aspecto que seu ‘eu‘, primeira pessoa do singular, pluraliza-se e torna-se ‘nós‘; é neste aspecto que o título do livro, “The Gastronomical Me” (“O ‘Eu’ Gastronômico”) destina-se a um plural de sujeitos que se identificam com as sensações, vivências e sentimentos escritos pela autora. Sujeitos em qualquer parte do mundo. É neste aspecto que ela empresta seu pronome ‘Me’ ao leitor, emprestando, também, seus sentidos para que possamos experimentar, em palavras, os sabores, aromas, texturas, sons, gostos e cores de suas cenas. É possível, ainda, ir além desta compreensão: ao abordar a dimensão de suas forças, ou ao exprimir emoções e memórias no conjunto de textos deste livro, a autora não apenas nos empresta sua fome, mas a partilha conosco, seus leitores. Fome que nós, humanos, sentimos.
Fome?
Esta é a palavra-chave da famosa introdução desta obra, em que ela responde por que escreve sobre comida, e não sobre a luta pelo poder, pela segurança, ou sobre o amor ou sobre a guerra. “A resposta mais fácil é dizer que, como a maioria dos Humanos, eu sinto fome“. E acrescenta, com maestria, que, quando escreve sobre fome, na verdade está escrevendo sobre o amor e a fome por este, sobre o afeto e o amor por este e a fome por este…”Conto sobre mim mesma (…), e acontece, sem que eu queira, que estou contando também sobre aqueles que estão comigo, e sobre sua necessidade mais profunda pelo amor e pela felicidade.”
Sendo o alimento parte essencial da vida de todos nós, bem como as emoções e percepções através dos sentidos, cada indivíduo está presente no texto desta autora; suas experiências coincidem com as nossas próprias lembranças. Temos em comum a humanidade e, como ela refere, a ‘fome’. Por instantes, nos sentimos personagens de sua autoria; noutras vezes, nos sentimos o ‘Eu Gastronômico’ que escreve as histórias. As fomes são as mesmas.
E, então, a beleza do último parágrafo deste prefácio está na partilha de sua emoção, com o leitor: “Há uma comunhão para além dos nossos corpos, quando o pão é partido e o vinho é bebido. E esta é minha resposta, quando as pessoas me perguntam: ‘por que você escreve sobre fome, e não sobre guerras ou amor?‘”
Seja ao ver sua avó fazendo geléias, seja ao partilhar uma refeição com sua irmã e seu pai, seja ao olhar com atenção um cardápio e escolher seu desejo, pela primeira vez: em cada história contada, há algo de nós. Porque, se as emoções são tão diversas em nossa subjetividade, há um ponto em comum em nós, humanos, e que nos torna co-autores destes textos: comemos, sentimos o sabor (ou a falta dele), temos fome, preparamos o alimento, sentimos prazer(aceso ou apagado)…Em qualquer tempo e geografia, comida e emoção nos despertam ou adormecem, nos satisfazem ou nos incompletam, nos nutrem ou nos destroem; seja como for, comida e emoção respondem à nossa necessidade primordial, a fome. Esta, de que Mary Frances Kennedy Fisher fala com tanta profundidade.
É de cada um de nós que a autora conta, quando escreve um texto que intitula: ‘A dimensão de minhas forças’. Você pode não desejar cozinhar, nem desejar escrever sobre a comida ou sobre o ato culinário; entretanto, a leitura desta obra é um passo firme, e prazeroso, na trajetória do comer consciente. E, com certeza, também na trajetória da conscientização de nossa fome pelo amor, pelo afeto, pela segurança, pela felicidade.
Minha leitura? A busca é, no fim das contas, pela ‘dimensão de nossas forças‘ e pelo saciar de nossas fomes, quanto mais buscamos conhecer a nós mesmos. Lendo ou cozinhando, descobrimos trechos de nosso subjetivo, experimentamos nossos sentidos e sentimentos. Somos nós, ali, refletidos em temperos ou em palavras. Basta nossa fome pela descoberta.
Obrigada pela visita!
Com afeto,
Betina MC.
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Sobre mim, Betina Mariante Cardoso
Sou Betina Mariante Cardoso, brasileira, trinta e poucos anos. Nasci e moro em Porto Alegre, no Sul do Brasil, cidade que amo de coração e onde vivencio o apego, o calor da família e a constância, virtudes necessárias na minha vida. Paradoxo, tenho encantos por viajar, romper a linearidade rotineira, esquecer o mapa no hotel e perder-me pelas ruas dos lugares que visito. Por quê? Para ter a chance de conhecer aquela confeitaria antiga na rua lateral, coisa que só o acaso permite. Tenho uma ligação forte com o conforto do cotidiano mas, quando me torno viajante, parto em busca das descobertas, do desconhecido. É quando me entrego à Serendipity que as viagens propiciam. E é com este mesmo estado anímico que venho para a cozinha: trazendo comigo a aventura, a curiosidade, o ímpeto pelo novo. Gosto de criar minhas receitas, mas sou também fã dos cadernos culinários, escritos à mão e com manchas de vida em suas páginas. Outro paradoxo.
Agradam-me os livros, as revistas, os blogs de forno-e-fogão. E tenho verdadeiro encanto pelas ‘Histórias do como-se-faz’, as narrativas orais que transmitem o conhecimento empírico, prático e caseiro, de geração a geração. Escutar uma história de cozinha é, para mim, uma riqueza única, porque faz parte de uma conversa, de uma partilha entre as pessoas. Sou médica psiquiatra e psicoterapeuta, profissão que exerço com amor e dedicação, e que dispara meu olhar para o subjetivo de nossas entrelinhas. Minha segunda atividade profissional é como proprietária de uma pequena editora, a Casa Editorial Luminara, ligação entre trabalho e espaço de liberdade.
No tempo livre, meu hobby principal é a culinária, desde a infância. Hoje, com a descoberta da ‘food writing‘, realizar a escrita culinária é, para mim, uma prática tão lúdica quanto cozinhar. Realizo algo que chamo de ‘cozinha perceptiva’. Nesta, escrita e a fotografia são ferramentas, pois ampliam a percepção e a descrição dos detalhes do ato culinário, ampliando também a exploração sensorial e a atenção ao presente, com benefícios para o autoconhecimento. Escrever, curiosar, ler, fazer colagens, blogar, viajar e fotografar são também experiências prazerosas para mim, com altas doses de felicidade.
Espero você nos próximos textos!
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