A COZINHA COMO METÁFORA: O ATO CULINÁRIO E SEUS HORIZONTES
English translation coming soon
E por falar em subjetividade, a partir da minha escrita sobre a obra de M.F.K. Fisher, “The Gastronomical Me”…Você já pensou na cozinha como metáfora? Pois a reflexão de hoje é sobre o ato culinário e seus horizontes, sua subjetividade… Deste universo, nasceu minha escrita de cozinha, em começo de 2012, pelo meu desejo de compartilhar as epopeias criativas de forno-e- fogão. Não apenas as receitas, mas toda a riqueza que a culinária pode produzir em nosso mundo interno, do autoconhecimento à percepção de aptidões, anseios, sensibilidade e tantas outras riquezas. Assim, surgiram meu blog Serendipity in Cucina, em março, e meu livro, nove meses depois. No entanto, esta história tem início há trinta anos atrás, lá na minha infância.
Explico.
Para mim, a cozinha sempre foi um território mágico, um espaço de descobertas, de experiências, de sabores, de liberdade. Quando éramos crianças, meu irmão e eu fazíamos o ‘bolo inventado’, onde tudo era possível na elaboração da massa do bolo, estimulados e supervisionados pela mãe. Aprendíamos a sentir o efeito dos ingredientes na textura da preparação, a conhecer os aromas e cores que cada etapa assumia, a viver nossa criatividade de modo lúdico, livre e, sem dúvida, cauteloso nas tarefas que só os adultos poderiam executar. Espiávamos o bolo crescendo no forno, sentíamos o cheiro inundando a cozinha, e entendíamos que o resultado era produto de nossas ideias, possibilitado pela expertise da mãe. Preparar receitas, conhecer elementos e reações químicas aplicados, vivenciar a diversão ímpar de mexer a massa e de vê-la crescer no forno, tudo isso era viver a culinária como objeto de nossa primeira autoria. E, além de tudo, saboreávamos o bolo no lanche da tarde!
Com sete ou oito anos, disse para a Vó Léia que desejava fazer um bolo de Natal, de maçã com castanha-do-pará, recheado e coberto com doce de leite e castanhas raladas. Nem imagino de onde tirei esta ideia, e nem mesmo porque escolhi esses ingredientes. Cozinheira de mão cheia, ela me deu um dos maiores presentes que eu poderia ganhar naquele Natal: a confiança na minha ideia e os ensinamentos práticos de como realizá-la – explicou-me tudo, tim-tim por tim-tim, deixando que eu mesma fizesse cada passo, exceto quando a atividade envolvesse cortar alimentos ou mexer no forno. Ali, pude descobrir que poderia inventar uma receita, mas isso envolvia uma nova etapa: descobrir que as medidas devem ser seguidas à risca, que há uma metodologia para o desenvolvimento da criação, que certos cuidados são essenciais, e tantas outras coisas que sei hoje sobre as receitas culinárias. Inventar ganhava um método.
Entretanto, o mais importante que aquela ocasião me proporcionou foi saber que eu poderia, a partir de um desejo, elaborar sua realização através de passos definidos, prestando atenção em cada detalhe de cada etapa. Então, a autora daquela torta seria eu mesma, da teoria à prática, com supervisão cuidadosa dos adultos. Claro que minha compreensão, na época, estava muito longe desta complexidade toda, mas me lembro de ter sentido alegria, muita alegria, e um orgulho por ter criado a receita. Era como o prazer de abrir um presente de Natal. Aquela experiência ficou profundamente marcada em mim, assim como a prática do bolo inventado. Criatividade e método eram atributos que começavam a me despertar encanto. Repeti o ‘como-se-faz’ da torta de maçã com castanha-do-pará nos outros Natais, seguindo os registros da primeira experiência. Com isto, verifiquei que o método, seguido à risca e com atenção aos passos do processo, resultava muito semelhante entre uma e outra vez. Acredito mesmo que tenha nascido ali meu prazer em inventar receitas e repeti-las.
Seguiu-se então o aprendizado de preparar receitas já conhecidas, como a da Nega Maluca, sempre sob supervisão. E, como toda a família era adepta da prática culinária, as oportunidades de observação e de treinamento eram múltiplas, e o encanto era crescente. Via minha mãe fazendo a lasanha anotada em seu caderno de receitas – feito à mão por uma tia –, camada por camada da lasanha, tudo passo a passo. E fui gostando cada vez mais de ler cadernos de receita: dos ingredientes ao modo de fazer, da leitura das receitas escritas à mão ao exercício mágico do preparo dos quitutes. Além disso, via o entusiasmo coletivo da mesa da cozinha nas vésperas de festas, principalmente nos Natais, em que a mãe, as avós e as tias picavam oleaginosas, preparavam sabores e compartilhavam a alegria festiva de produzir os cardápios de nossa história. Aquelas reuniões de cozinha pareciam ser a coisa mais divertida do mundo, um lugar em que se reuniam o prazer e a prática de todas as gerações, em uma vivência contagiante. Ajudando nos preparativos, observando a força de cada uma das criações próprias da mãe, da Vó Léia, da Vó Alda – cuja ambrosia ensolarava qualquer mesa de doces – e das minhas tias, descobri que cada uma tinha suas especialidades, suas preferências por esta ou aquela receita e a habilidade fervorosa na execução das gostosuras.
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